O Talebã é um grupo fundamentalista islâmico que controlou o Afeganistão entre 1996 e 2001 com um rígido regime baseado em uma versão radical da Sharia, a lei islâmica. Eles foram retirados do poder por uma coalizão militar liderada pelos Estados Unidos em 2001, mas voltaram a dominar o país rapidamente depois da retirada das tropas americanas em julho de 2021.
Com a invasão de Cabul neste domingo (15/08), o grupo já tem praticamente controle total no país.
O Talebã fez negociações diretas com os EUA em 2018 e, em fevereiro de 2020, os dois lados fecharam um acordo de paz em Doha. Os EUA se comprometeram a se retirar do país e o Talebã prometeu não atacar as forças americanas. Outras promessas incluíam não permitir que a Al-Qaeda ou outros grupos extremistas operassem nas áreas controladas por eles e prosseguir com as negociações de paz nacionais.
Mas no ano que se seguiu, o Talebã continuou a atacar as forças de segurança afegãs e civis e avançou rapidamente em todo o país.
Após a saída das tropas americanas, em julho, em um mês o Talebã cercou e invadiu Cabul, a última região controlada pelo governo democrático civil.
O Talibã, ou "estudantes" na língua afegã, surgiu no início da década de 1990 no norte do Paquistão, após a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão.
Acredita-se que o movimento começou em seminários religiosos - a maioria financiados com dinheiro da Arábia Saudita - que pregavam uma forma fundamentalista de islamismo sunita.
A promessa do Talebã - que atuava em uma área abrangendo o Paquistão e o Afeganistão - era restaurar a paz e a segurança e impor sua própria versão austera da Sharia, ou lei islâmica, uma vez no poder.
Do sudoeste do Afeganistão, o Talebã rapidamente estendeu sua influência.
Em setembro de 1995, eles capturaram a província de Herat, na fronteira com o Irã, e exatamente um ano depois capturaram a capital afegã, Cabul.
Eles então derrubaram o regime do presidente Burhanuddin Rabbani - um dos fundadores dos mujahedin (combatentes) afegãos que resistiram à ocupação soviética.
Em 1998, o Talebã controlava quase 90% do Afeganistão.
Os afegãos, cansados dos excessos e das lutas internas dos mujahedin depois que os soviéticos foram expulsos, em geral deram as boas-vindas ao Talebã quando eles apareceram pela primeira vez.
Sua popularidade inicial foi em grande parte devido ao sucesso em erradicar a corrupção, diminuir os crimes e tornar as estradas e as áreas sob seu controle seguras para o comércio.
Mas o Talebã também introduziu punições de acordo com sua interpretação estrita da lei Sharia - como execuções públicas de supostos assassinos e de adúlteros e amputações para ladrões.
Os homens eram obrigados a deixar a barba crescer e as mulheres a usar a burca, uma vestimenta que cobre o corpo todo.
O Talibã também proibiu a televisão, a música e o cinema, e não permitia que meninas de 10 anos ou mais frequentassem a escola.
Eles foram acusados de vários abusos contra os direitos humanos e culturais. Um exemplo foi em 2001, quando o Talebã destruiu as famosas estátuas do Buda Bamiyan no centro do país, gerando indignação internacional.
O envolvimento do Paquistão
O Paquistão negou repetidamente que tenha fomentado a criação do Talebã,
mas não há dúvida de que muitos afegãos que inicialmente aderiram ao movimento foram educados em madrassas (escolas religiosas) no Paquistão.
O Paquistão também foi um dos três únicos países, junto com a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, que reconheciam o Talebã como governo legítimo no Afeganistão. Também foi o último país a romper relações diplomáticas com o grupo após o endurecimento do regime.
A certa altura, após serem retirados do poder no Afeganistão, o Talebã ameaçou áreas controladas pelo Paquistão.
Um dos ataques do Talebã mais conhecidos e condenados internacionalmente foi em outubro de 2012, quando a estudante Malala Yousafzai foi baleada a caminho de casa, na cidade de Mingora.
Uma grande ofensiva militar, dois anos depois, após o massacre da escola Peshawar, reduziu muito a influência do grupo no Paquistão.
Pelo menos três figuras-chave do Talebã paquistanês foram mortas em ataques feitos com drones pelos EUA em 2013, incluindo o líder do grupo, Hakimullah Mehsud.
Santuário da Al-Qaeda
As atenções do mundo se voltaram para o Talebã após os ataques de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center em Nova York, nos EUA.
O Talebã foi acusado pelos EUA de ser um santuário para os principais suspeitos do ataque - Osama Bin Laden e seu grupo extremista Al-Qaeda.
Em 7 de outubro de 2001, uma coalizão militar liderada pelos EUA invadiu o Afeganistão e, na primeira semana de dezembro, o regime do Talebã entrou em colapso.
O então líder do grupo, Mullah Mohammad Omar, e outras figuras importantes, incluindo Bin Laden, escaparam da captura.
Muitos líderes do Talebã supostamente se refugiaram na cidade paquistanesa de Quetta, de onde guiavam o grupo. Mas a existência do que foi apelidado de "Quetta Shura" foi negada pelo Paquistão.
Grupo retomou o país aos poucos
Apesar do número cada vez maior de tropas estrangeiras no Afeganistão, o Talebã gradualmente recuperou controle de certas regiões e voltou a estender sua influência, tornando grandes áreas do país inseguras.
Houve inúmeros ataques do Talebã em Cabul e, em setembro de 2012, o grupo realizou uma incursão de alto nível em uma base da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
As esperanças de um acordo de paz surgiram em 2013, quando o Talebã anunciou planos de abrir um escritório no Catar. Mas a desconfiança de todos os lados permaneceu alta e a violência continuou.
Em agosto de 2015, o Talebã admitiu que havia encoberto a morte do líder Mullah Omar - supostamente por problemas de saúde em um hospital no Paquistão - por mais de dois anos.
No mês seguinte, o grupo disse que deixou de lado semanas de lutas internas e se reuniu em torno de um novo líder na forma de Mullah Mansour, que havia sido vice de Mullah Omar.
Mais ou menos na mesma época, o Talebã assumiu o controle da capital de uma província pela primeira vez desde sua derrota em 2001, a cidade de Kunduz, estrategicamente importante.
Mullah Mansour foi morto em um ataque dos EUA feito com drones em maio de 2016 e substituído por seu vice, Mawlawi Hibatullah Akhundzada, que permanece no controle do grupo.
O Talebã fez negociações diretas com os EUA em 2018 e, em fevereiro de 2020, os dois lados fecharam um acordo de paz em Doha.
Os EUA se comprometeram a se retirar do país e o Talebã prometeu não atacar as forças americanas. Outras promessas incluíam não permitir que a Al-Qaeda ou outros grupos extremistas operassem nas áreas controladas por eles.
Mas no ano que se seguiu, o Talebã continuou a atacar as forças de segurança afegãs e civis e avançou rapidamente em todo o país. Após a saída das tropas americanas, em julho, em um mês o Talebã cercou e invadiu Cabul, a última região controlada pelo governo civil eleito democraticamente.
Afeganistão: o que é a Sharia, lei islâmica que o Talebã quer aplicar no país?
Diante da preocupação internacional com a situação das mulheres no Afeganistão após o Talebã assumir o controle do país, um porta-voz do grupo fundamentalista disse que eles estão "comprometidos com os direitos das mulheres sob a Sharia (a lei islâmica)".
Mas o que isso quer dizer?
A Sharia é o sistema jurídico do Islã. É um conjunto de normas derivado de orientações do Corão, falas e condutas do profeta Maomé e jurisprudência das fatwas - pronunciamentos legais de estudiosos do Islã. Em uma tradução literal, Sharia significa "o caminho claro para a água".
A Sharia serve como diretriz para a vida que todos os muçulmanos deveriam seguir. Elas incluem orações diárias, jejum e doações para os pobres.
O código tem disposições sobre todos os aspectos da vida cotidiana, incluindo direito de família, negócios e finanças.
A lei determina que homens e mulheres precisam se vestir "com modéstia". O que isso quer dizer na prática pode variar muito, mas em geral significa que as mulheres precisam cobrir no mínimo os cabelos. É comum que os espaços sejam separados por gênero.
A lei também pode conter punições severas. O roubo, por exemplo, pode ser punido com a amputação da mão do condenado. O adultério pode levar à pena de morte - por apedrejamento.
A Organização das Nações Unidas (ONU) condena esse tipo de punição e afirma que apedrejamentos são um tipo de "tortura', um tratamento "cruel, desumano e degradante, e portanto claramente proibidos".
No entanto, a rigidez da Sharia e a forma como ela é aplicada pode variar ao redor do mundo.
Nem todos os países muçulmanos adotam esse tipo de punição e pesquisas indicaram que a opinião dos religiosos quanto a elas varia bastante ao redor do mundo.
Tariq Ramadan, um estudioso muçulmano na Europa, advoga pelo fim dos castigos corporais no mundo islâmico, argumentando que as situações sociais em que eles foram criados já não existem mais.
As várias faces da Sharia
Existem muitas versões da Sharia e sua aplicação varia enormemente no mundo islâmico.
Ela pode tanto ser a base do sistema de Justiça em países islâmicos onde o Estado não é laico - onde o Corão praticamente se torna a Constituição - quanto servir apenas de orientação para ações privadas de muçulmanos em países laicos.
Por exemplo, um muçulmano que vive no Reino Unido e está na dúvida do que fazer se um colega o convida para um bar após o trabalho pode procurar um estudioso da Sharia. Ele então receberá conselhos que garantam que seus atos estão dentro do permitido pela sua religião.
No entanto algumas atitudes permitidas pela Sharia não podem ser aplicadas por cidadãos privados em países laicos por serem ilegais nesses locais.
Alguns países não-laicos, como a Arábia Saudita, por exemplo, aplicam uma forma rígida e punitiva da lei, onde homicídio e tráfico de drogas podem ser punidos com morte e onde adúlteros podem ser apedrejados.
Já na Malásia, há muitas pessoas que não são muçulmanas e as dinâmicas sociais e econômicas são diferentes, então há uma interpretação completamente diferente da lei.
Como será a aplicação da Sharia pelo Talebã no Afeganistão?
A única referência para entender como será o regime são os cinco anos nos quais o Talebã governou o país entre 1996 e 2001, quando foi retirado do poder por uma junta militar liderada pelos Estados Unidos.
Nesse período de cinco anos, a interpretação da Sharia que estava em vigor no país era uma das mais rígidas e violentas do mundo.
O país tinha execuções públicas, apedrejamentos, amputações e punições com chicotadas.
Gangues paramilitares circulavam nas ruas, atacando homens que mostravam os tornozelos ou usavam qualquer tipo de roupa ocidental.
Homens eram obrigados a deixar a barba crescer e as mulheres só se aventuravam a sair se tivessem permissão por escrito dos homens. Elas não podiam trabalhar ou estudar e precisavam usar a burca, uma vestimenta que as cobria completamente.
O Talebã já afirmou que vai aplicar a Sharia nessa segunda tomada de poder, o que levou ao desespero de mulheres afegãs.
Militantes do grupo fundamentalista afirmaram à BBC que estão determinados a impor novamente sua versão da Sharia, incluindo apedrejamento por adultério e amputação de membros por roubo.
Um porta-voz do Talebã afirmou que os militantes respeitarão os direitos das mulheres e da imprensa, mas não se sabe exatamente se essa promessa será colocada em prática. Ele disse que as mulheres poderão sair de casa sozinhas e continuarão a ter acesso à educação e ao trabalho, mas terão que usar a burca.
Algumas das mulheres conseguiram fugir de áreas controladas pelo Talebã disseram que os militantes exigiam que as famílias entregassem meninas e mulheres solteiras para se tornarem esposas de seus combatentes.
Muzhda, de 35 anos, uma mulher solteira que fugiu com suas duas irmãs de Parwan para Cabul antes dos fundamentalistas tomarem a cidade, disse que tiraria a própria vida em vez de permitir que o Talebã a obrigasse a se casar.
"Estou chorando dia e noite", disse ela à agência de notícias AFP. Não se sabe se Muzhda conseguiu sair do país antes dos fundamentalistas tomarem a capital.
Cabul em fotos: o dia seguinte ao Talebã tomar o poder no Afeganistão
O Talebã está se estabelecendo após tomar Cabul, a capital do Afeganistão, no último domingo (15/08).
No último domingo (15/8) os guerrilheiros do Talebã entraram na capital do Afeganistão, Cabul, e tomaram o palácio presidencial. O presidente afegão, Ashraf Ghani, fugiu do país, supostamente para o vizinho Uzbequistão.
O avanço e tomada de Cabul consolida o domínio territorial do grupo Talebã no Afeganistão e acontece após a retirada das tropas americanas e dos países aliados do país.
Tem bem menos trânsito, a maioria das lojas está fechada. Mas as pessoas parecem muito mais calmas.
No aeroporto internacional, no entanto, as cenas foram catastróficas, segundo nosso correspondente.
Atualmente, há 2,5 mil soldados americanos no aeroporto — e mais 500 vão chegar nas próximas horas, informou o porta-voz do Pentágono, John Kirby.
As tropas americanas — fotografadas abaixo — ainda estão "trabalhando para restabelecer a segurança", acrescentou o porta-voz, enquanto o Pentágono anunciava a suspensão dos voos.
Vídeos compartilhados nas redes sociais parecem mostrar civis afegãos agarrados à lateral de uma aeronave militar dos EUA enquanto ela se prepara para decolar.
A Anistia Internacional fez um apelo à comunidade internacional para agir "de forma decisiva para evitar mais tragédias".
"O que estamos testemunhando no Afeganistão é uma tragédia que deveria ter sido prevista e evitada", declarou a secretária-geral da organização, Agnes Callamard.
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