Política : PROTAGONISTA
Enviado por alexandre em 08/07/2019 09:46:08

A fábrica brasileira de novos políticos

Por Naiara Galarraga Gortázar/El País

O Brasil a descobriu em março. Com 25 anos, rosto de boa moça e sem levantar a voz, Tabata Amaral protagonizou um memorável duelo em uma comissão parlamentar com o então ministro da Educação, Ricardo Vélez. Um filósofo e ensaísta de 75 anos escolhido para o cargo por recomendação do guru ideológico do presidente Bolsonaro, que ensina filosofia pela Internet nos EUA. “Já passaram três meses, senhor ministro… não é possível que, depois de um trimestre [no cargo], o senhor apresente um PowerPoint com 2 ou 3 pontos para cada área de educação. Isso não é planejamento estratégico. Isso é uma lista de desejos!” espetou-lhe a deputada. Como se fosse a mais adulta da sala acrescentou: “Eu me pergunto se o senhor estudou para esta reunião”. Ela, que sempre foi aluna aplicada, evidentemente sim. Imediatamente, comentaristas e internautas a elevaram como a nova revelação política do Brasil. E ela o é. Uma Alexandria Ocasio-Cortez brasileira. Mas Tabata –como é popularmente conhecida– também é uma experiência política.

Sua eleição como deputada federal em outubro foi a culminação de uma minuciosa estratégia para levar ao Congresso outro tipo de deputados, diferentes dos caciques e aparelhadores de sempre. Depois de passar por um teste de ética, ela e 132 outras pessoas que nunca tinham ocupado um cargo público, selecionadas entre 4.000 candidatos, foram treinadas durante seis meses em saúde, educação, gestão pública, economia, liderança… com o objetivo de chegar ao Congresso, segundo uma estratégia que o empresário Eduardo Mofarrej criou e implementou através do grupo RenovaBR. Dez deles estão entre os 594 parlamentares eleitos em outubro para a Câmara e o Senado. Eles pertencem a vários partidos. De esquerda e de direita. O fenômeno dos patrocinados por grupos que dizem promover a renovação na tão odiada política brasileira soma 34 deputados e senadores, dos quais 16 são estreantes, como Tabata, a jovem que colocou em apuros o idoso ministro.

São grupos heterodoxos que nasceram ou cresceram no calor das investigações anticorrupção e dos protestos subsequentes. Alguns só formam novatos, outros também políticos, há aqueles que apelam a todas as ideologias com o extremismo como única linha vermelha. Há, inclusive, um focado na criação de novos nomes nas favelas. A Raps (Rede de Ação Política pela sustentabilidade), com 19 parlamentares, o grupo mais bem-sucedido, foi criada por Guilherme Leal, coproprietário da gigante de cosméticos verdes Natura e candidato a vice-presidente sem sucesso. O Ocupa Política promoveu quatro deputadas do esquerdista PSOL que contribuem para que o Congresso se pareça um pouquinho mais com o Brasil mestiço da rua. Renovação e honestidade resumem o mantra que compartilham.

A iniciativa que deu origem a Tabata se destaca porque a ideologia não faz parte de sua agenda. “O Renova não tem programa político, nossa missão é atrair gente talentosa para a política porque nestes 30 anos a sociedade brasileira lhe virou as costas. Precisamos de novas referências, não importa se são de esquerda ou de direita, para que as pessoas voltem a acreditem na política”, explica antes de um café expresso Mufarej, um empreendedor que se tornou rico no mundo financeiro. A própria Tabata não tinha partido, ela o buscou depois que embarcou nessa aventura. Escolheu um de esquerda com a qual teve atritos porque defende a necessidade de reformar as aposentadorias, o principal projeto do Governo Bolsonaro. “É gente que tem fé na política como uma missão, não como um negócio”, diz Mofarrej. O RenovaBR, ao qual ele agora se dedicada em tempo integral, é financiado por doações de quase 500 pessoas, incluindo empresários em caráter pessoal e organizações filantrópicas listadas em seu portal. O orçamento é de cerca de 15 milhões de reais em dois anos.

O cientista político Fernando Limongi, da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas, argumenta que sob a fachada de renovação desses grupos muitas vezes está a velha política de sempre com um novo disfarce. “O que alguns empresários estão fazendo é driblar o sistema. Como não podem financiar campanhas (o Supremo Tribunal Federal proibiu doações de empresas em 2015), financiam indiretamente a criação de líderes políticos”, explica por telefone. Com um acréscimo, diz: aplicam à política um discurso empresarial, entregue à eficácia e aos resultados. “No final, acabam considerando que, se eles governassem tudo seria ótimo”.

Tendo em vista o sucesso nas eleições gerais, agora trabalham para as próximas eleições municipais. Rodrigo Cobra, de 28 anos, dirige o processo do RenovaBR para escolher entre os 31.000 inscritos os mil que formarão –desta vez on-line– com a ideia de transformá-los em prefeitos e vereadores. “A honestidade é inegociável”, afirma. Outra chave é a sua história de vida. Que tenham enfrentado, e superado, desafios.

E aí Tabata se encaixa à perfeição. Como Barack Obama, o rapaz filho de um queniano ausente e uma senhora do Kansas. Ou Alexandria Ocasio-Cortez, uma garçonete de origem porto-riquenha. Criada na periferia de São Paulo, a deputada brasileira é filha de uma empregada doméstica e de um motorista de ônibus que morreu por causa das drogas, como ela mesma revelou em seu intenso debate com o ministro. Aliás, demitido pouco depois. Brilhante, seus êxitos nas Olimpíadas de matemática para crianças abriram-lhe as portas de uma escola particular e, com uma bolsa de estudos, foi para Harvard, onde estudou Astrofísica e Ciência Política. De volta para casa, se tornou ativista pela educação. Vários dos novatos que a acompanham no Congresso passaram por Yale, Georgetown ou Oxford.



VEJA

Nasci em São Paulo. Meu pai é americano e minha mãe, brasileira. Eles se conheceram numa viagem a Porto Rico e nunca viveram juntos. Quando eu estava com 1 ano, minha mãe decidiu que deveríamos nos mudar para os Estados Unidos. Formada em jornalismo, ela sempre foi uma cidadã do mundo; era versada em vários idiomas. Fomos para Miami, e cedo entrei em uma escola onde pudesse aprender diversas línguas. Cresci falando, além do português, inglês, espanhol e alemão.

Durante a vida escolar, fiz amizade com vários imigrantes. Só que havia uma importante diferença entre nós: eu tinha um pai americano, então obtive um passaporte que me permitia viajar sem problemas. Meus amigos não tinham isso. Assim, vi vários deles ser impedidos de tentar entrar numa universidade dos Estados Unidos, embora fossem bons alunos. Dessa maneira, a vida deles empacou. Alguns caíram em depressão, outros se voltaram para o álcool. Foi diante desse cenário que despertei para a questão da imigração, que me levaria para a política.

Aprovada com bolsa quase integral, ingressei na Universidade Stanford. Lá, cursei design de produtos — e continuei atenta às questões sociais. A cada verão eu ia para um lugar diferente. Dei aulas a meninas no Quênia; na Índia e no Camboja, envolvi-me com o problema do saneamento básico. Esse tipo de experiência só fez crescer em mim a vontade de ajudar o próximo. Isso se acentuou durante os anos em que trabalhei no Emerson Collective, organização empenhada em promover mudanças sociais, fundada em 2004 pela executiva Laurene Powell Jobs (viúva de Steve Jobs). No entanto, aqui no Vale do Silício, na Califórnia, onde vivo, existe a mentalidade de que pessoas ambiciosas não trabalham para o Estado. Com tudo o que aprendi no âmbito social, porém, descobri que os desafios mais complexos passam pelo universo da política. Se queria resolvê-los, eu precisava me lançar nela.

Aos poucos, foi crescendo em mim a ideia de tentar uma vaga no Congresso. Resolvi concorrer pelo Partido Democrata porque acredito que ele luta por uma sociedade mais inclusiva — exatamente o que almejo. Política é inclusão. O processo de campanha pode ser horrível. É muito caro, e há pessoas que tentam fazer com que você suje o seu oponente. A mídia pode estar mais interessada em fofocas do que em conversas reais. A gente quer as melhores pessoas no governo, entretanto o sistema prefere indivíduos agressivos ou com mais dinheiro. Hoje, o membro médio do Congresso é homem, advogado, rico, de 58 anos. Apesar disso, tenho muita esperança. Os tempos estão mudando.

Concorro para tornar o Congresso mais reflexivo e responsivo ao público. Quero acabar com a noção de que os políticos só aparecem para participar da sociedade a cada quatro anos. As eleições primárias acontecerão em março de 2020. Vários candidatos concorrerão a duas vagas. Estou competindo com Nancy Pelosi (a atual presidente da Câmara dos Representantes), que provavelmente será a número 1. Meu objetivo é o segundo lugar. Se isso ocorrer, poderemos avançar para a eleição geral, nacional, marcada para novembro do próximo ano, que consagrará apenas uma candidatura.

Quando eu era criança, imaginei que um dia voltaria ao Brasil para trabalhar, mas passei tanto tempo nos EUA que considero cada vez mais difícil tornar a viver no país onde nasci. Ao longo dos anos, vi quantos problemas persistem no Brasil. Se eu regressasse, sentiria como se estivesse retornando ao país para “salvá-lo”, de certa forma. Não quero isso.

É importante, no entanto, frisar: tenho muito orgulho de ser brasileira. A simpatia do nosso povo mudou a minha vida, especialmente na área da política. Essa nossa maneira feliz de ser atrai as pessoas, o que me ajuda muito a falar com os outros. Na minha campanha, preciso conversar diariamente com vários estrangeiros — e uso o charme brasileiro para isso.

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