Vítimas de Covid-19 são cremadas na Índia; recorde de casos e mortes sobrecarrega o país

Data 03/05/2021 09:26:47 | Tóopico: Regionais

A Covax, iniciativa global de compartilhamento de vacinas, ainda é a melhor chance de algumas nações adquirirem as doses

Laura Smith-Spark e Nectar Gan, da CNN

Vítimas de Covid-19 são cremadas na Índia
Vítimas de Covid-19 são cremadas na Índia; recorde de casos e mortes sobrecarrega o país
Foto: Mayank Makhija - 26.abr.2021/NurPhoto via Getty Images

Um ano atrás, quando a pandemia da Covid-19 ainda estava em seu início, o chefe da Organização Mundial da Saúde (OMS) enfatizou que uma abordagem global seria a única saída para a crise.

“O caminho a seguir é o da solidariedade: solidariedade em nível nacional e solidariedade em nível global”, disse o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em uma coletiva de imprensa em abril de 2020.

Avance rapidamente 12 meses e as cenas devastadoras na Índia, onde hospitais foram sobrecarregados por uma onda de casos de Covid-19 e milhares estão morrendo por falta de oxigênio, e o que se sugere é que os avisos foram ignorados.

A Índia não é o único foco da Covid-19 no mundo. A Turquia entrou em seu primeiro lockdown nacional na quinta-feira (29), um passo indesejável causado pelas taxas de infecção que agora são as mais altas da Europa.

O Irã relatou o maior número de mortes diárias por Covid-19 até agora no início da semana passada, com muitas cidades forçadas a um lockdown parcial para conter a propagação do vírus. O presidente iraniano, Hassan Rouhani, disse que o país está sofrendo uma quarta onda de infecções.

Em grande parte da América do Sul, o quadro também é sombrio. O Brasil, com mais de 14,5 milhões de casos confirmados de coronavírus e quase 400 mil mortes, de acordo com dados da Universidade Johns Hopkins, continua tendo a maior taxa diária de mortes por Covid-19 por milhão no mundo.

Alguns países oferecem ajuda à medida que surgem pontos críticos – por exemplo, enviando em concentradores de oxigênio, respiradores e outros suprimentos médicos para a Índia nos últimos dias. Mas a resposta global coordenada solicitada por Tedros um ano atrás (e repetidamente desde então, pela OMS e outros órgãos de saúde globais) permanece indefinida.

Ao mesmo tempo em que alguns países ocidentais estão de olho em um retorno a uma vida mais normal nas próximas semanas, o quadro mundial continua terrível. O número de casos globais de Covid-19 aumentou pela nona semana consecutiva e o número de mortes subiu pela sexta semana consecutiva, como informou a OMS no dia 26.

Tedros Adhanom, diretor-Geral da Organização Mundial da Saúde
Tedros Adhanom, diretor-Geral da Organização Mundial da Saúde, falou sobre situação da pandemia no Brasil
Foto: Reprodução/CNN Brasil (30.abr.2021)

“Vamos colocar os números em perspectiva: tivemos quase tantos casos globalmente na semana passada quanto nos primeiros cinco meses da pandemia”, disse Tedros.

A Covax, a iniciativa global de compartilhamento de vacinas que fornece doses com desconto ou grátis para países de baixa renda, ainda é a melhor chance que a maioria tem de adquirir as doses que podem colocar a pandemia sob controle.

Mas a iniciativa depende fortemente da capacidade da Índia, por meio de seu Serum Institute of India (SII), de produzir doses da vacina AstraZeneca, que são a pedra angular da Covax.

Embora a Índia tenha prometido 200 milhões de doses para a Covax, com opções para até 900 milhões a mais, a serem distribuídas a 92 países de baixa e média renda, a piora rápida no país levou o governo indiano a mudar o foco da iniciativa para priorizar seus próprios cidadãos.

“Desequilíbrio chocante”

Ao mesmo tempo, os países ocidentais têm sido criticados por fazer estoque de vacinas. Alguns, incluindo Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, encomendaram muito mais doses de vacina do que o necessário.

O secretário de saúde do Reino Unido, Matt Hancock, disse na semana passada que o país (que agora está vacinando pessoas saudáveis na faixa dos 40 anos, já tendo oferecido pelo menos uma dose a todos os seus residentes mais velhos e vulneráveis) não tinha vacinas sobressalentes para enviar à Índia. O governo do Reino Unido disse que compartilhará as doses excedentes em um estágio posterior.

O SII “está fabricando e produzindo mais doses de vacina do que qualquer outra organização. E, obviamente, isso significa que eles podem fornecer vacina às pessoas na Índia a preço de custo”, disse Hancock. “A Índia pode produzir sua própria vacina, com base na tecnologia britânica, e essa é a maior contribuição que podemos dar que venha efetivamente da ciência britânica”.

Nos Estados Unidos, todos os cidadãos com 16 anos ou mais agora podem tomar a vacina para a Covid-19 e 30% da população está totalmente vacinada, de acordo com dados de sexta-feira (30) do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos. No início da semana, a Casa Branca disse que doaria até 60 milhões de doses da vacina da AstraZeneca (da qual tem um estoque, mas cujo uso ainda não foi autorizado no país) nos próximos meses após uma revisão de segurança federal.

Bem mais da metade da população total de Israel recebeu pelo menos uma dose da vacina contra o coronavírus, e o país está abrandando as restrições.

No início de abril, apenas 0,2% das mais de 700 milhões de doses de vacinas administradas globalmente foram dadas em países de baixa renda, enquanto nações de alta e média alta renda respondiam por mais de 87% das doses, de acordo com Tedros, da OMS.

Chile utilizará a Coronavac, importada de Pequim, para iniciar vacinação em mass
Chile utilizará a Coronavac, importada de Pequim, para iniciar vacinação em massa
Foto: Thomas Peter/Reuters

Em países pobres, apenas uma em mais de 500 pessoas recebeu a vacina para a Covid-19, em comparação com quase uma em cada quatro pessoas em países de alta renda. Tedros descreveu o contraste como um “desequilíbrio chocante”.

“Alguns [dos 92 países de baixa renda] não receberam nenhuma vacina, nenhum recebeu o suficiente e agora outros não estão recebendo seus lotes de segunda dose a tempo”, Tedros disse em um evento de doadores globais em 15 de abril.

“Mostramos que a iniciativa Covax funciona. Mas, para cumprir todo o seu potencial, precisamos que todos os países assumam os compromissos políticos e financeiros necessários para financiar totalmente a Covax e acabar com a pandemia”.

Embora muitas nações mais ricas tenham prometido fundos, elas estão menos dispostas a desistir de suas vacinas para a Covid-19. Na semana retrasada, a França se tornou o primeiro país a doar doses da AstraZeneca de seu estoque doméstico para a Covax.

“O problema é que as pessoas com poder são, por via de regra, os governos nacionais”, afirmou Michael Head, pesquisador sênior em saúde global da Universidade de Southampton, na Inglaterra. “A OMS oferece orientação, mas não tem muito poder. E é a OMS que trabalha em coisas como equidade para garantir que o mundo esteja o mais protegido possível”.

“Obviamente, os governos nacionais estão lá para agir em prol dos interesses de seus próprios cidadãos e, quando se trata de uma pandemia, o mundo é bastante egoísta, todos os países são muito egoístas – até certo ponto, eles cuidam de seu próprio povo primeiro”, afirmou o pesquisador.

Solução global

Iniciativa liderada pela OMS, pela Vaccine Alliance (conhecida como Gavi) e pela Coalition for Epidemic Preparedness Innovation, a Covax foi anunciada no ano passado como a “única solução verdadeiramente global” para a pandemia, garantindo acesso global equitativo às vacinas.

Seu objetivo inicial era ter dois bilhões de doses de vacinas disponíveis até o final de 2021, o que deve ser suficiente para proteger as pessoas de alto risco e vulneráveis, bem como os profissionais de saúde da linha de frente nos países participantes, de acordo com a Gavi.

Mas, diante do acúmulo de vacinas nos países ricos e da interrupção do fornecimento, a Covax tem se esforçado para cumprir seu cronograma de entrega.

O primeiro lote de doses da vacina para Gana, por exemplo, foi entregue em 24 de fevereiro. Até o momento, a iniciativa já despachou 49,5 milhões de doses de vacinas contra o coronavírus para 121 países – muito aquém do plano original de distribuição 100 milhões de doses até o final de março.

“Nossa meta inicial era atingir 20% da população, com foco específico nos 92 países e territórios de menor renda elegíveis para apoio do Compromisso de Mercado Avançado Gavi Covax”, disse um porta-voz da Gavi.

“Fechamos acordos para muito mais do esse montante, embora o contexto de oferta restrita nos mercados globais signifique que a primeira metade do ano tenha tido atrasos no envio das doses aos países. Com o financiamento correto em vigor, acreditamos que será possível financiar e garantir 1,8 bilhão de doses para essas 92 economias de baixa renda em 2021”.

A luta da Covax é um exemplo revelador dos obstáculos para uma resposta global coordenada, à medida que cada país prioriza seus próprios interesses.

A iniciativa atua comprando um portfólio de vacinas contra o coronavírus em grandes quantidades a um preço mais baixo direto nas empresas farmacêuticas e as distribui aos países participantes. Os países de alta renda podem comprar as vacinas a preços mais baratos negociados pela Covax (e talvez para fazer uma reserva além de seus próprios acordos bilaterais). Já as nações mais pobres que de outra forma não teriam condições de pagar essas vacinas podem obter as doses a um preço com desconto ou de graça.

Desde o início, no entanto, a Covax tem lutado para garantir vacinas dos fabricantes, com as nações ricas se apressando para abocanhar o fornecimento global de vacinas por meio de seus próprios acordos bilaterais com empresas farmacêuticas. De acordo com dados compilados pela Universidade Duke, os países de alta renda possuem atualmente 4,7 bilhões de doses de vacinas para a Covid-19, enquanto a Covax comprou apenas 1,1 bilhão.

Além disso, apenas vacinas aprovadas pela OMS podem ser distribuídas pela iniciativa, o que limita seu portfólio. Até agora, apenas as vacinas da Pfizer-BioNTech, Moderna, AstraZeneca e Johnson & Johnson receberam sinal verde para uso de emergência pela OMS.

Embora ostentem a alta taxa de eficácia de cerca de 95%, as vacinas da Pfizer-BioNTech e Moderna requerem armazenamento em freezer – e muitos países de baixa renda simplesmente não têm essa capacidade de armazenamento refrigerado.

Portanto, antes da vacina Johnson & Johnson ser aprovada pela OMS em março, a Covax dependia muito da vacina AstraZeneca, que pode ser mantida em temperaturas normais de geladeira. No início de março, a empresa disse que a meta era entregar 237 milhões de doses de doses da AstraZeneca para 142 países até o final de maio. A meta dificilmente será alcançada devido ao atraso no fornecimento da Índia.

“Muitas das vacinas da AstraZeneca são feitas na Índia. Mas a Índia tem milhares de mortes todos os dias e está completamente sobrecarregada, então este é outro desafio da Covax”, disse Dale Fisher, professor de doenças infecciosas da Universidade Nacional de Singapura.

Mercado lotado em Mumbai; Índia superou 100 mil casos diários de Covid-19
Mercado lotado em Mumbai, na Índia; país superou a marca dos 100 mil casos diários de Covid-19
Foto: Niharika Kulkarni - 5.abr.2021/Reuters

Equidade da vacina

A aliança Gavi disse à CNN que espera que toda a produção de vacinas indianas esteja comprometida a proteger seus próprios cidadãos “pelo menos até o próximo mês”. Mas insistiu que tais questões foram antecipadas e que, como resultado, estava em negociações com fabricantes de outras vacinas candidatas sobre os cronogramas de fornecimento.

Próximas na lista de aprovação da OMS estão duas vacinas fabricadas na China. A vacina fabricada pela gigante farmacêutica estatal chinesa Sinopharm deve ser aprovada até o final de abril, enquanto a outra, da empresa privada Sinovac (que leva o nome de Coronavac no Brasil), deve ser aprovada no início de maio.

Como as vacinas AstraZeneca e Johnson & Johnson, ambas as vacinas chinesas requerem apenas um refrigerador normal e, portanto, podem ser mais facilmente transportados e manipuladas em países em desenvolvimento.

A China comprometeu dez milhões de doses de suas vacinas para a Covax, mas esse número fica pequeno em comparação com as mais de 100 milhões de doses enviadas ao exterior por meio de acordos bilaterais com países individuais – incluindo doações para nações pobres.

Embora seja um gesto bem-vindo, os acordos de doação, muitas vezes influenciados pela política, não necessariamente deixam as vacinas a chegarem aos países mais necessitados.

Thomas Bollyky, diretor do Programa de Saúde Global da organização Council on Foreign Relations, disse que, dos 65 países para os quais a China prometeu doações, todos, exceto dois, são participantes da Iniciativa Cinturão e Rota, o programa comercial e de infraestrutura global multibilionário do governo chinês.

“Embora eu esteja feliz que a China esteja doando, essas doações não estão sendo distribuídas tendo em mente a prioridade que é prevenir mortes desnecessárias ou acabar com a pandemia o mais rápido possível”, opinou Bollyky. “Eles parecem ser distribuídos de maneira orientada pelos interesses estratégicos da China”.

Outra preocupação é a falta de transparência em torno das duas vacinas chinesas, disse Bollyky. Nem a Sinopharm nem a Sinovac divulgaram os dados completos dos ensaios clínicos em estágio final.

Renúncia de patentes

Como a demanda supera a oferta, as grandes empresas farmacêuticas estão ouvindo pedidos para que suspendam as patentes de suas vacinas para permitir que elas sejam produzidas mais amplamente.

Bollyky disse que, para aumentar a produção global de vacinas, no entanto, o que é realmente necessário é a transferência de tecnologia.

“Não é apenas uma questão de propriedade intelectual. É também a transferência de know-how. Não acho que haja evidências claras de que a renúncia de patente será a melhor maneira de permitir a transferência de tecnologia”.

A renúncia de patentes não funcionará para vacinas da mesma forma que age para medicamentos, disse Bollyky. Para remédios para HIV, por exemplo, os fabricantes eram mais ou menos capazes de fazer a engenharia reversa sem muita ajuda do desenvolvedor original.

Paciente com Covid-19 é intubada em hospital do Texas, nos EUA
Paciente com Covid-19 é intubada em hospital do Texas, nos EUA
Foto: Go Nakamura - 11.dez.2020/Getty Images

“É muito diferente para as vacinas, que na verdade são tanto um processo biológico quanto um produto. É difícil aumentar a produção neste processo para a empresa original, o que dirá outro fabricante tentar descobrir isso sem ajuda”, continuou. “Requer muito conhecimento que não faz parte da patente”.

Para Bollyky, o acordo entre a AstraZeneca e o Serum Institute of India é um exemplo de sucesso dessa transferência de tecnologia, no qual o licenciamento da patente aconteceu voluntariamente. “A questão é o que podemos fazer para facilitar mais acordos como aquele entre a AstraZeneca e o Instituto Serum da Índia para que haja essa transferência”, pontuou.

Head, o pesquisador da Universidade de Southampton, acredita que a capacidade de produção é o maior problema nesse aspecto.

“Não há muitos locais capazes de fabricar qualquer uma das vacinas aprovadas em grande escala – certamente não o suficiente para cobrir a população de 8 bilhões em todo o mundo.

Compartilhar propriedade intelectual durante a pandemia é algo que deveria acontecer, mas não resolve os problemas”, disse. “Fabricar vacinas é difícil. É duro montar rapidamente um novo local com todo o equipamento, infraestrutura, todos os ingredientes da vacina, com equipe adequada para produzir muitas doses de vacinas de alta qualidade. É complicado”.

A redução da Índia nas exportações de vacinas para a Covax e outros países enquanto luta contra sua própria crise é compreensível, disse Head, mas “obviamente trará consequências para outros países, particularmente aqueles nas partes mais pobres do mundo que mal vacinaram alguma parte de sua população ainda. Isso basicamente sustentará a pandemia por um pouco mais de tempo do que esperávamos”.

Head prevê que as interrupções no fornecimento continuarão nos próximos seis a 12 meses, com a demanda em alta e as empresas batalhando para adquirir ingredientes limitados e aumentar a produção.

Soberania da vacina

Diante desse cenário, alguns países estão buscando diversas maneiras de obter as doses de vacina de que precisam tão desesperadamente.

O ministro da saúde turco, Fahrettin Koca, disse que a Turquia enfrentaria dificuldades para obter vacinas nos próximos dois meses.

Além de assinar um acordo para 50 milhões de doses do Sputnik da Rússia, o país também começará a produzi-la localmente, segundo Koca. Além disso, a Turquia também está trabalhando para desenvolver sua própria vacina, sendo a candidata mais avançada uma vacina inativa que deve iniciar os testes de fase 3 em breve, segundo o ministro.

Cuba também busca a soberania da vacina, com o desenvolvimento de cinco candidatas a vacinas para a Covid-19, duas delas em fase três, ou final, de testes. Há muito desligado de grande parte do resto do mundo, o país caribenho tem uma experiência na produção de medicamentos que poucas outras nações em desenvolvimento podem igualar.

De acordo com Head, aumentar a capacidade de pesquisa e produção em todo o mundo será a chave para gerenciar futuras pandemias.

“Entre os períodos de pandemia, devemos aprender lições sobre como melhorar a infraestrutura de pesquisa em ambientes de renda baixa e média-baixa. Precisamos de vários centros grandes, fábricas na África, Sudeste Asiático e América do Sul que sejam capazes de desenvolver vacinas, diagnósticos e tratamentos em grande escala, e com a papelada em dia também”.

Essa papelada, disse Head, garantiria que as vacinas produzidas nesses centros regionais chegassem primeiro aos países necessitados – e evitaria que as nações mais ricas furassem a fila.

Isil Sariyuce, Kara Fox, Gul Tuysuz, Ramin Mostaghim, Amy Cassidy e Sarah Dean, da CNN, contribuíram para esta reportagem.

(Texto traduzido. Leia o original em inglês aqui.)

Funcionário de saúde carimba viajante de Kerala que chega em Mumbai, na Índia
Funcionários de saúde marcam com carimbo de quarentena viajantes de Kerala que chegam em Mumbai, na Índia
Foto: Satish Bate - 25.abr.2021/Hindustan Times via Getty Images



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