DOM MOACYR GRECHI

Data 18/10/2021 23:00:00 | Tóopico: Brasil

Dom Moacyr Grechi um exemplo de vida
HISTORIANDO com Júlio Olivar
Arcebispo Dom Moacyr Grechi
O catarinense Dom Moacyr Grechi (falecido em 2019, aos 83 anos) foi bispo no Acre e arcebispo de Rondônia.
Conheceu bem de perto o líder seringalista Chico Mendes. O religioso também ajudou na formação de Marina Silva que saiu da sua condição de analfabeta para tornar-se uma liderança reconhecida internacionalmente.
Um dos nomes mais importantes da Igreja Católica no Brasil das últimas décadas, ele participou da criação do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e fundador da CPT (Comissão Pastoral da Terra), da qual foi o primeiro presidente, conduzindo-a por oito anos, até 1983.
Dom Moacyr esteve próximo dos movimentos sociais, defendendo indígenas, sem-terra, negros, ribeirinhos e colonos. Com sua voz mansa mas contundente, despertou a admiração de muitos, mas também a ojeriza de tantos outros do campo da direita.
Seu depoimento foi essencial para a condenação do ex-deputado e coronel Hildebrando Pascoal, líder do grupo de extermínio no Acre; o famoso “deputado motosserra”.
Houve um tempo em que o arcebispo celebrava missas escoltado por policiais que ele chamava, em tom bem humorado, de “coroinhas”.
Entrevistei-o em várias ocasiões, a primeira delas para a Rádio Rondônia, em 2001; o destaque foi essa conversa, em 2011.
🎙 Obrigado por me receber. Entrevistei o senhor há algum tempo na Rádio Rondônia, mas perdi a gravação. Então, hoje, gostaria de recapitular e atualizar alguns pontos para ter arquivado seus posicionamentos. Pretendo instalar uma espécie de “museu da pessoa”, como aquele da São Paulo.
DOM MOACYR — Agradeço. É uma boa oportunidade o contato e ótima ideia fazer esses registros, seja bem-vindo.
🎙 Não obstante a sua posição de líder maior da igreja no Estado, para muitos o senhor é um ativista de esquerda.
MOACYR — Ser defensor dos direitos humanos não é ser militante, mas sim coerente com aquilo que Jesus defendeu à luz do evangelho. Estranho seria eu endossar ou engrossar fileira a favor de quem explora o povo, de quem quer fazer da Amazônia um parque de diversões ou uma terra da relativização. Em nome de um falso progresso, alguns querem estar acima da lei ou até mesmo forjar uma legislação que encubra o crime. No sentido de esclarecer, de evangelizar, muitas vezes nos confrontamos com interesses do capital.
🎙 O senhor criou as CEBs no Acre?
DOM MOACYR — Não. Eu fui convertido pelas Comunidades Eclesiais de Base. Faz mais de 30 anos. As comunidades nasceram no meio do povo inspiraras na ressurreição de Jesus Cristo. É a redenção da Igreja.
🎙 Então o senhor é socialista?
DOM MOACYR — Sou evangelista. Não tenho alinhamento partidário ou ideológico. Sou adepto dos ensinamentos cristãos que me bastam, não precisando de nenhum suporte ou tese que fujam ao que está na Bíblia para estar ao lado dos pobres. Jesus disse: “Eu vim para que todos tenham vida”. Todos. Não é uma Igreja sectária a que eu vivo. Mas quando falo todos, não posso excluir os párias, os que não estão convidados para o banquete dos aproveitadores, dos saqueadores, dos imprudentes que destroem o futuro do mundo. Onde houver ameaça ao direito da existência plena das pessoas, temos, como cristãos, que interferir usando simplesmente a palavra de Deus, combatendo a opressão, alimentando a esperança e o conhecimento, que liberta. Não basta libertar as pessoas do pecado, mas é preciso também libertá-las das consequências do pecado que traz a insegurança, a violência, o tráfico de drogas, o crime organizado atuando e matando os jovens nos bairros periféricos, as desigualdades sociais, os abusos, o desdém às mulheres, os presídios superlotados e a servidão.
🎙Qual o maior pecado que existe?
DOM MOACYR — O da segregação social. O de não dar oportunidades para que o pobre tenha educação, por exemplo. Tantos talentos perdidos na caminhada pela falta de condições. É falta de amor ao próximo não se afetar pelas dores e o silêncio dos irmãos. Precisamos de uma educação que seja de fato libertadora, e não uma espécie de presente ofertado pelo Estado. Na medida em que as pessoas adquirem conhecimento científico somado a uma consciência de comunidade, as coisas começam a mudar. Os pecados diminuem.
🎙 O senhor é um defensor dos indígenas. Isso certamente acarreta transtornos para a Igreja, considerando que, de certa forma, eles são vistos por muitos católicos como atravancadores do progresso.
DOM MOACYR — O indígena não pode ser coisificado como aquele objeto que está no meio do caminho impedindo o nosso caminhar. Eles existem, e existem antes de nós que emigramos para a Amazônia, existem apesar de nós. Sim, eles existem e têm o direito de existir, com seu costumes, suas culturas e suas crenças, e na terra que é deles. Temos que ser humildes na relação com eles. A correta mentalidade de progresso é a que possibilita que todo o meio no qual estamos inseridos leve vantagens lícitas e éticas da atuação comercial que se exerce naquele lugar, sem causar impactos que ferem a vida humana, animal e vegetal. O agronegócio e a pecuária oferecem quais vantagens para a Amazônia? O setor madeireiro atua corretamente? Assim como as hidrelétricas, são práticas nocivas e invasivas do direito de existir dos índios, quilombolas e caboclos. Não há compensação ambiental que baste e que seja compatível com as perdas; são benefícios pontuais ofertados pelas usinas à comunidade para minorar o que já fizeram e continuam fazendo de mal. Há outras formas de se gerar energia, a ciência está aí. Mas os lucros que as hidrelétricas têm enriquecem a alguns que não querem abrir mão disso, por isso continuam forçando a barra para manter a atividade predatória.
Rondônia tem terra para todos. Os rios, a fauna, a flora são as maiores riquezas. Deixem os índios em paz e criem mecanismos para a produção pacífica no campo; hoje dominam latifúndios, alguns com milhares de hectares nas mãos de uma pessoa só, tudo com anuência de um Estado e de uma justiça para poucos. Quem trava o verdadeiro progresso e contribui para o crescimento da miséria são os latifundiários e um governo impiedoso que não prioriza os assentamentos de quem quer trabalhador e produzir com dignidade e sem devastações.
🎙No Acre, onde atuou durante 26 anos (1972/1998), o senhor enfrentou o poder constituído, o crime organizado e as milícias. Não temeu pela sua vida?
DOM MOACYR — Viver às vezes pode ser um risco. Mas sobreviver, apenas sobreviver, nos diminui como seres dotados de alma, de espírito, de inteligência e de sensibilidade. Às vezes, é preciso adotar uma postura de enfrentamento e escolher um lado. E isso pode custar até a nossa integridade física. Mas não a vida, propriamente, que vai muito além, pois creio na salvação e na eternidade. Muitos padres já morreram, inclusive aqui em Rondônia. Eu não não vou ser matado mais porque vou morrer antes (risos). Fui ameaçado e tenho medo de morrer, como todos. Mas não deixarei de denunciar.
O pior momento que passei nesse sentido foi o caso envolvendo o então deputado Hildebrando Pascoal, absolutamente truculento. Dei uma entrevista de 8 minutos ao “Fantástico”, da TV Globo, falando dos crimes cometidos pelo coronel. Foi quando o Brasil o conheceu. É preciso exercitar e praticar a humildade enquanto Igreja, mas nunca deixando de lado a coragem, mesmo com medo.
🎙 O senhor teve algum papel na fundação do PT no Acre?
DOM MOACYR — No Acre, existiam apenas dois partidos: PDS e PMDB, que não permitiam que os pobres, seringueiros, colonos, índios, gente da periferia, tomasse parte das discussões políticas, sendo apenas usados como eleitores. A Igreja, através das pastorais de cunho social, das Comunidades Eclesiais de Base, do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), interferiu ou inspirou na criação do PT. O partido foi importante para promover a libertação do Acre em diversas frentes.
🎙Hoje o PT é o mesmo daquele tempo?
DOM MOACYR — O partido teve um papel importante na inclusão de quem não tinha voz. Lideranças como Chico Mendes e Marina Silva surgiram na Igreja e ganharam a consciência do sindicalismo, da defesa do meio ambiente, da organização popular que passa pela educação, mesmo que não seja aquela educação formal. Mas, respondendo à sua pergunta: o PT não é mais o mesmo, está perdendo muito de sua essência e todos os partidos estão ficando muito iguais uns aos outros. É preciso refletir e fazer mea-culpa. Os discursos substituíram as práticas. O PT se formalizou, não é mais aquele.
🎙 Inclusive, uma de suas pupilas deixou o PT. O senhor se considera o mentor da presidenciável Matina Silva?
Não, não me considero mentor da Marina. Talvez fui seu pastor ou amigo em algum momento. Eu tive contato com ela quando ela era pouco mais que menina, iletrada, com malária e quase morrendo. Ela foi a mim para pedir ajuda para tratar-se. Dizia que estava morrendo e precisava de socorro. Dei um jeito de interná-la no Hospital São Camilo, em São Paulo, e três meses depois ela estava de volta. Tornou-se se militante católica, ambientalista, participou da Pastoral da Terra, que nós criamos. Atuou ao nosso lado. Sim, ela acabou deixando o PT porque ambos já não são mais os mesmos: nem ela e nem o partido. Mais do que isso, ela também deixou a Igreja Católica e converteu-se à Assembleia de Deus.
🎙 Isso lhe chateia.
DOM MOACYR — Não chateia, mas me exige reflexões. Que ponto ela não entendeu?
🎙 O que ela deveria entender?
DOM MOACYR — A Igreja pela nossa concepção inclusiva.
🎙 Os casos de pedofilia envolvendo sacerdotes é uma grande preocupação?
DOM MOACYR — Essa não é uma questão de hoje. É antiga, mas agora vista com absoluta aversão. Não é uma exclusividade da nossa instituição, contudo, não podemos deixar de fazer mea-culpa. A maioria dos sacerdotes atendem a um chamado espiritual e se preparam muito para atuarem com ética e compromisso. Mas como se sabe, o pedófilo é um doente mental. E ele se infiltra. A Igreja também foi vítima dessa conduta. O que não pode é a Igreja omitir-se. O abusador precisa ser punido e a Igreja ser transparente nessas relações, nao negligenciar. É preciso deixar claro o que é pecado e o que é crime. Pedofilia envolve as duas coisas. A gente pode acolher e ajudar espiritualmente todos os pecadores, mas jamais ser cúmplice deles em seus crimes e desvios.
🎙Como o senhor vê a união civil entre pessoas do mesmo sexo?
DOM MOACYR — Os homossexuais merecem ser acolhidos e respeitados. Em lugar algum está escrito sob a inspiração divina que existe ser humano inferior em relação ao outro. Não há subclasses, apesar de muitos estarem em desvantagem social. Em princípio, sou pelo acolhimento. Ademais, é preciso registrar que se a prática da homossexualidade é um pecado, hostilizar o homossexual não torna ninguém santo. Pelo contrário. Não existem pecadinho e pecadão. Todos têm pecados, e só conseguimos a salvação pela misericórdia. Quem não for pecador, que atire a primeira pedra.
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NOTA — Dom Moacyr faleceu de ataque cardíaco 60 anos depois de sua ordenação sacerdotal ocorrida em sua cidade natal, Turvo (SC), em 29 de julho de 1949.
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