Conheça a ilha de Antraz, lugar que foi um dos mais bizarros e mortais do planeta
A pouco menos de 1km da costa noroeste da Escócia, repousa uma das ilhas mais infames do mundo. Com aproximadamente 1,9km de comprimento, a Ilha Gruinard, como é conhecida oficialmente, é popularmente chamada de “Ilha de Antraz”. O nome é uma referência à arma biológica antraz, amplamente testada por diversas forças militares, em especial durante a época da Segunda Guerra Mundial.
De acordo com alguns relatos históricos, encontrados em livros e contos muito antigos, a ilha era vista um local perfeito para ladrões e rebeldes durante o século 16, já que era bastante fácil e prático se esconder por lá. No entanto, desde que a ilha passou a ser analisada de perto pelas autoridades escocesas, em 1920, ninguém oficialmente fez da ilha sua casa.
Em 1942, forças dos Aliados decidiram viajar para Guinard na esperança de criar uma bomba biológica capaz de detonar com as estratégias alemãs. Para isso, foi desenvolvida a “Operation Vegetarian” (ou ‘Operação Vegetariano’, em português). A ideia era espalhar bactérias letais nos suprimentos de carne das tropas do Eixo, disseminando a doença entre os próprios soldados e também entre os animais nas fazendas.
A bomba desenvolvida pelos Aliados utilizava uma bactéria conhecida como Vollum 14578, que se tornava cada vez mais letal a cada hospedeiro que afetava. Entre os sintomas causados pela doença provocada por essa bactéria estavam infecções gastrointestinais, hemorragias, abscessos na garganta e na pele, entre outras complicações digestivas.
Para iniciar os testes, 50 homens foram enviados para Guinard junto com 80 ovelhas, que serviriam como cobaias. Em poucos dias, no entanto, os animais foram todos mortos, e os pesquisadores perceberam que a arma que haviam criado era forte demais, e praticamente incontrolável. Depois de liberar uma nuvem de antraz na direção das ovelhas, os cientistas acabaram por contaminar não apenas os animais, mas todo o solo da remota ilha escocesa, condenando o território para sempre… Ou pelo menos por um bom tempo.
Imediatamente após perceber o tamanho do estrago, os responsáveis pelos testes desinfetaram todos os equipamentos e incineraram os corpos das ovelhas, mas não havia como recuperar todo o prejuízo. Ainda que tenham conseguido poupar a Europa da devastação, nada pôde ser feito em relação à Ilha Guinard, que precisou passar por uma severa quarentena. O local chegou a ser retirado da grande maioria dos mapas, e a entrada na região era totalmente proibida. Por muito tempo, autoridades do mundo inteiro temeram que terroristas internacionais pudessem entrar na ilha em busca de vestígios da bactéria mortal, mas felizmente, ao que tudo indica, a feroz arma química jamais fora reproduzida.
Fotos: Reprodução
Em uma tentativa de “limpar” a ilha, mais de 300 toneladas de formaldeído foram despejadas no local em 1986. Para testar a segurança da ilha, um novo rebanho de ovelhas fora levado até lá. Passados quatro anos, as autoridades declararam a ilha como segura. No entanto, isso não foi o suficiente para convencer as pessoas a frequentarem ou morarem na região, que até hoje permanece totalmente inabitada e, na maior parte do tempo, 100% deserta.
"Adoecemos cuidando de doentes, não porque fomos ao shopping" o desabafo de médica com covid-19
Mariana Alvim - @marianaalvim
Da BBC News Brasil em São Paulo
"Tivemos uma guerra biológica, e os soldados nessa guerra fomos nós, profissionais de saúde. Nossa farda foi a máscara. Adoecemos, e alguns morreram nessa luta. E ninguém fugiu dela."
"Mas nem o nosso hino a gente fez valer: 'Verás que um filho teu não foge à luta'. Que mãe gentil é essa? O mínimo que merecemos é o reconhecimento de que caímos em serviço."
As palavras desgostosas são da médica Priscila da Silva Daflon, de 40 anos, que trabalha em Santa Catarina e procurou a BBC News Brasil através das redes sociais para relatar o que classifica como descaso do poder público e até da população na consideração ao esforço de pessoas como ela e colegas da equipe — profissionais de saúde e infectados com covid-19.
Para Priscila, o cúmulo da insatisfação veio em setembro, quando recebeu a resposta de um pedido de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) feito à Prefeitura de Itajaí, da qual é funcionária concursada, trabalhando em Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). Ela também trabalha, como autônoma, em uma unidade de atendimento infantil a serviço da Secretaria de Saúde do município.
A médica conta que foi infectada com covid-19 em julho, o que foi detectado por um teste rápido e também por seu quadro clínico — ela desenvolveu uma isquemia cardíaca, em que o fluxo de sangue e oxigênio para o coração fica prejudicado.
Ela ficou internada por alguns dias no quarto em um hospital com atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) — atualmente ela está em período de carência na aquisição de um novo plano de saúde, pago do bolso.
Mas o laudo respondeu a ela e a outros profissionais: "(...) Aos servidores que declararem terem sido contaminados pelo COVID-19 durante desempenho das funções laborais informamos que não serão emitidas CATs pela Coordenadoria de Perícia Médica e Saúde Ocupacional em virtude do diagnóstico de COVID-19 aos servidores públicos efetivos ou não, uma vez que não se tem como afirmar com absoluta convicção que esta doença foi adquirida em ambiente de trabalho".
Citando uma lei federal que define acidentes de trabalho, o documento diz ainda que "se faz necessário a observação do nexo causal, pois o fato de o servidor ser diagnosticado com COVID-19 em meio a uma Pandemia não significa que automaticamente se trate de uma doença ocupacional, visto que, muitos servidores — principalmente da área de saúde — apresentam mais de um vínculo empregatício".
Referindo-se ao laudo como uma "ofensa", Priscila reclama que cientificamente não é possível demonstrar a causalidade da infecção — ou seja, a conexão entre o momento da infecção e seu resultado, o adoecimento.
"É a prefeitura que tem que provar que fui contaminada em outro lugar. Nós profissionais de saúde somos por si só grupo de risco."
'Não fomos ao shopping'
O CAT pode ser um primeiro passo para acesso a auxílios via Instituto Nacional de de Seguridade Social (INSS) por problemas de saúde ligados ao trabalho, mas segundo a médica, ela estava em busca apenas da formalização, em papel, de que adoeceu.
Priscila reconhece que teve acesso adequado a Equipamentos de Proteção Individual (EPI) mas, mesmo assim, a exposição no local de trabalho é inevitável — "com um monte de paciente circulando, na hora de intubar".
E, para ela, uma das evidências mais fortes de que não foi em outro lugar que se contaminou é o fato de que seu companheiro e a filha de 12 anos não tiveram covid-19. Já diversos colegas de trabalho na UPA, sim.
"Não adoecemos porque fomos ao shopping, à praia, a uma festa… Adoecemos porque estávamos cuidando dos doentes. E isso que é vergonhoso: não só o governo de Itajaí, mas também os estaduais, federal, deixarem de reconhecer que esses profissionais adoeceram lutando pela saúde do país", lamenta.
Ela fala caracteriza também como um "soco no estômago" a decisão do governo federal em setembro de não incluir a covid-19 na lista de doenças ocupacionais — o que facilitaria o acesso ao auxílio-doença por meio do INSS, entre outras formas de assistência.
"Naquele momento, vimos que estávamos à nossa própria sorte", lembra a médica, natural de Nova Iguaçu (RJ) e formada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-graduação em medicina da família pela mesma universidade.
Em nota enviada à BBC News Brasil, a Prefeitura de Itajaí afirmou que "o servidor diagnosticado com COVID-19 deve comprovar que o seu vínculo empregatício é único e exclusivo com o Município de Itajaí para que a CAT seja emitida — uma vez que muitos servidores, principalmente os da área da saúde, atuam em mais de um local."
"Entretanto, caso a CAT seja negada pelo município, o servidor efetivo pode ainda fazer a solicitação através do sindicato. Os servidores em regime CLT também podem fazer a solicitação via INSS ou sindicato."
A Prefeitura destacou ainda que adotou diversas medidas para prestar assistência aos profissionais de saúde na pandemia: "treinamento das equipes; disponibilização completa de EPIs; testagem dos servidores; desinfecção de ambientes; medida provisória para concessão de benefício aos profissionais da linha de frente que têm filhos em idade escolar; central de monitoramento de pacientes positivos, negativos sintomáticos, negativos assintomáticos, idosos, idosos com doenças crônicas (incluindo os nossos servidores); e central de luto: acompanhamento psicológico de famílias que perderam entes queridos para COVID-19."
Pandemia e precarização do trabalho na saúde
Diferente da assistência que o município diz ter oferecido aos funcionários, Priscila Daflon afirma que não teve acompanhamento muito próximo do seu caso de infecção — tendo acesso apenas a testes rápidos e optando por fazer um teste molecular, o PCR, do próprio bolso.
Este deu negativo, segundo ela porque não foi feito no período em que a infecção estava mais ativa, e sim quando estava prestes a trabalhar — motivo pelo qual ela quis testar. Para avaliar se tinha condições de voltar a trabalhar, ela conta também ter consultado um infectologista por conta própria.
"Quem se preocupou em ir atrás de um diagnóstico, e depois de uma avaliação para retorno, fui eu. Depois de uma semana internada, voltei — cansada, com o corpo doendo, mas voltei, porque havia muita necessidade de médicos naquele momento."
Ela reconhece que, como funcionária do município, tem uma situação de emprego mais confortável do que muitos outros colegas na saúde — em que a "pejotização", a contratação de profissionais como autônomos ou pessoa jurídica, é uma tendência reconhecida até mesmo por entidades de classe, como o Conselho Federal de Medicina (CFM).
Em abril, o conselho chegou a enviar ao Ministério da Saúde uma carta pedindo assistência financeira aos médicos infectados durante a pandemia, citando as vulnerabilidades com a pejotização como "a fragilidade do vínculo, a insegurança e a perda de direitos trabalhistas e previdenciários como o 13º salário, horas extras, adicional pelo trabalho noturno e insalubre, FGTS, licença maternidade, auxílio-doença, entre outros".
"Nossa preocupação, neste momento, é garantir que os médicos possam enfrentar essa pandemia com de forma segura em diferentes aspectos", argumentou o CFM. Não há notícias de que o pedido de tenha sido atendido.
Priscila cita os casos de colegas técnicas de enfermagem que ficaram gravemente doentes e precisaram de vaquinhas online para ir se tratar em outras cidades; e de um colega médico que também adoeceu seriamente e, tendo CLT e afastado com uma licença, teve a remuneração do município de Itajaí substituída por um salário pelo INSS, menor. Todos se recuperam pouco a pouco.
Segundo a prefeitura da cidade catarinense, "os servidores estatutários (efetivos) recebem a remuneração integral quando do afastamento por problemas de saúde, conforme previsto em estatuto próprio. Já os servidores da modalidade de contratação CLT seguem a regra previdenciária do INSS, ou seja, quando do afastamento por problema de saúde recebem a remuneração conforme o teto máximo do INSS".
'Situações traumatizantes'
A médica reconhece que a secretaria de saúde do município foi sensível em certos casos, fornecendo fisioterapia e atendimento com nutricionistas para alguns funcionários que adoeceram, mas fala em insensibilidade de setores como o administrativo, que está rejeitando pedidos de CAT.
"Enquanto as prefeituras, as câmaras municipais, as próprias perícias trabalhavam de forma remota, nós não tivemos a opção de fechar. Só aumentamos nossa carga de trabalho e exposição. Mas estávamos todos lá, com medo, vínculo precário e todos esses riscos."
"Passamos por sofrimento psicológico, por situações traumatizantes. Não estávamos acostumados a ver tantos pacientes sufocando, morrendo sem conseguir respirar. Essa pandemia trouxe nossos avós agonizando, quatro, cinco no mesmo plantão. Ver o olhar de um paciente indo para o tubo", lembra a médica, se emocionando em alguns momentos da ligação.
Ao mesmo tempo, ela diz que o período da pandemia formou uma "rede de solidariedade" como "em poucas vezes na vida" viu igual — "de médico para médico, de médico para enfermeiro, de técnico para médico".
Ela lembra por exemplo de uma anestesiologista que se voluntariou para dar uma palestra às equipes do município, ensinando formas de prevenir a infecção no contato com pacientes; e de um médico que se disponibilizou a ajudar no planejamento da compra de insumos para lidar com a pandemia.
Priscila menciona ainda uma rede de apoio formada entre profissionais para ajudar no transporte de colegas que adoecessem e precisassem de tratamento; e também pessoas que cancelaram férias não porque não podiam viajar, mas porque sabiam da demanda de trabalho.
"Eu via esses colegas correndo de um lado para o outro para ajudar alguém que ele nem sabe quem é. Cujo nome não faz diferença. É muito comum a gente encontrar as pessoas na rua depois e elas perguntarem: 'Você lembra de mim? Você me ajudou tanto'. E a gente não lembra, porque são tantas pessoas."
"Nós escolhemos esse contato quando fizemos o juramento profissional."
Por outro lado, a médica confessa o desapontamento ao testemunhar como os pacientes, ou pacientes em potencial, vêm agindo na pandemia.
"Quando a população se aglomera, quando se coloca em risco em grupo, dá tristeza no nosso coração. Porque colocamos nossas famílias e filhos em risco por eles. Mas eles não se importam em se contaminar — e se se contaminarem, vão nos contaminar."
"A gente não quer aplauso. Queremos que cada um entenda que quando se expõe desnecessariamente, é uma violência contra o profissional da saúde."
Mas Priscila destaca também momentos em que o carinho das pessoas fez a diferença — como as cartinhas de agradecimento enviadas por uma igreja à equipe, ou a lanchonete próxima ao trabalho que abria excepcionalmente nas madrugadas para enviar alimentação aos profissionais de saúde.
"Isso deu um gás para a gente, aliviava o peso do nosso medo. Era muito legal o reconhecimento — nem toda remuneração é financeira."
"Mas no início as pessoas estavam mais comovidas. Agora parece que quase voltamos à normalidade, que as pessoas perderam o medo."
"Somente aplausos não vão ajudar os médicos e enfermeiros doentes. Não estou falando em dinheiro, mas do reconhecimento de que adoecemos lutando."
A história por trás da foto mais emblemática da luta para erradicar a pólio na América Latina
Luis Fermín Tenorio Cortez (ao centro) foi a última criança vítima do poliovírus selvagem em todo o continente americano
"Cada vez que pegávamos a estrada, ficávamos com medo. Houve muitos movimentos subversivos. Eles empilhavam os cadáveres na beira da estrada e colocavam estacas e uma pequena placa sobre eles que dizia que haviam sido mortos como delatores."
Quase três décadas se passaram, mas Roger Zapata, um pediatra peruano, lembra-se vividamente de como arriscou a vida percorrendo o país em busca de casos de poliomielite.
Zapata está com 72 anos e ainda trabalha como médico especializado em crianças na capital peruana, Lima.
A foto registra um marco: Tenorio Cortez, hoje com 32 anos, foi a última vítima do poliovírus selvagem em todo o continente americano.
A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com ele e Zapata sobre a história da famosa foto e como, mesmo em meio a conflitos armados, foi possível derrotar uma doença que só em 1975 afetou quase 6 mil crianças da região.
'Tínhamos a convicção'
Em 1988, a poliomielite, também conhecida como pólio, doença infecciosa causada pelo poliovírus, que é transmitida de pessoa a pessoa por meio de secreções respiratórias ou pela via fecal-oral e que atinge principalmente o sistema nervoso, deixou paralisadas 1 mil crianças no mundo todos os dias.
Por isso, foi chamada de poliomielite infantil, porque foram as crianças que mais a contraíam.
Naquela década, o Rotary Club, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), governos e outras entidades promoveram massivas campanhas de vacinação.
No Peru, o Rotary, liderado por Gustavo Gross, arrecadou milhões de dólares e mobilizou cerca de 4 mil voluntários para o programa de imunização.
No primeiro semestre de 1991, nenhum caso foi registrado.
Zapata então trabalhou no Ministério da Saúde do Peru e foi membro de uma das equipes contratadas pela Opas com um objetivo fundamental.
"Tínhamos a missão de investigar todo caso que parecesse ser poliomielite. Tínhamos que ir a lugares muito difíceis, encontrar a criança, examiná-la e ver se era ou não", disse.
"Se fosse poliomielite, isso nos dizia que o vírus circulava na área. Mas encontramos muitos casos que não eram, como alguns casos de retardo mental."
Rastrear o vírus em meio a um conflito com o Sendero Luminoso, um dos grupos subversivos mais violentos da América do Sul, exigiu imensa determinação e coragem.
"Os movimentos subversivos atacaram centros de saúde, explodiram pontes... Nunca soubemos o que aconteceu com alguns profissionais de saúde", disse Zapata.
"Houve muitos perigos que compartilhei com colegas que também tinham sua alta cota de sacrifício em outros Departamentos do país. Não fui eu sozinho. Mas estávamos convencidos de que isso poderia ser feito. Sabíamos que tínhamos que superar essas situações difíceis, superar nossos medos, nós mesmos."
O encontro com Tenorio Cortez
Zapata viajou para Pichanaki em agosto de 1991 para confirmar um possível caso de poliomielite.
"Quando o vimos, Luis Fermín tinha cerca de 2 anos e 4 meses. Ele tinha problemas motores em ambos os membros. Segundo o que sua mãe adotiva nos contou, o menino foi abandonado ainda bebê."
Foi um dos fotógrafos que cobriu a campanha de erradicação da Opas, Armando Waak, quem captou a famosa imagem.
O pediatra lembra o encontro com a criança como "emotivo".
"Eu tinha um pouco mais de apego a essa criança. Era uma sensação de que essa criança precisava de apoio."
Existem várias versões sobre por que ele ficou doente.
Em 2018, a jornalista canadense Christine McNab organizou, para um relatório da Fundação das Nações Unidas, um encontro entre médico e paciente em Pichanaki.
Na ocasião, os dois visitaram Joaquín Delgado, um dos enfermeiros que há três décadas cuidava da vacinação na cidade.
Delgado, que ainda trabalha como enfermeiro em Pichanaki, lembra que Tenorio Cortez recebeu a primeira das três doses necessárias da vacina contra pólio.
Mas quando os vacinadores voltaram para a segunda dose, sua mãe adotiva ficou com medo e não permitiu que eles entrassem.
Em meio ao conflito armado, Delgado lembrou, "havia muita desconfiança".
'Sinto dor'
Após o diagnóstico, o menino recebeu ajuda de rotarianos e principalmente de Gustavo Gross, que o levou para Lima e se encarregou de sua educação.
Assim, Tenorio Cortez passou cerca de 15 anos na capital antes de retornar a Pichanaki, e continua tendo o apoio e o carinho de Gross e dos rotarianos.
"Amo o senhor Gross como um pai, como o pai que nunca tive", disse ele à BBC News Mundo.
Sua mãe adotiva faleceu há quatro anos. Tenorio Cortez agora trabalha em uma loja local e sonha um dia ter "um pequeno negócio de refrigerantes e alimentos".
"Gosto de cozinhar. A comida peruana é a melhor do mundo."
Ele relembra nostalgicamente de sua infância, de quando não sentia o peso da poliomielite, como agora.
"Quando você é criança não dá muita importância, pensa em brincar. Já adulto é diferente. Por alguns anos, meu pé doía quando andava. Fico cansado, não consigo andar direito ou correr, e isso me deixa desconfortável. Fico irritado por não poder fazer o que as outras pessoas fazem."
O mistério de Pichanaki
Antes de ser diagnosticado, não havia indícios da circulação do vírus em Pichanaki. Como, então, o vírus foi parar lá?
O caso Tenorio Cortez levou os investigadores a se concentrar na área central do país. E isso nos permitiu encontrar a resposta ao enigma: famílias inteiras vinham do norte para colher café.
"Certa vez estávamos na província de Chanchamayo e nos disseram que, de madrugada, chegavam muitos caminhões com pessoas. Fomos (para verificar) entre 2h e 3h da manhã e, de fato, os caminhões chegaram", disse Zapata.
Uma pesquisa improvisada do médico e seus colegas revelou que a maioria das pessoas vinha de áreas de cultivo de café no norte do país.
"Chegavam famílias inteiras com crianças, e a questão era econômica, porque cada uma era pago por lata cheia de café colhido, e as crianças participavam ajudando. Recebiam um quarto de lata ou meia lata, conforme sua capacidade. Esse trabalho dificultava o recrutamento para a vacinação, porque chegavam de madrugada e se dispersavam imediatamente nos cafezais."
"Decidiu-se então fazer uma vacinação, chamada varredura sanitária, que abrangia o norte e centro do país. Depois disso, nunca mais tivemos casos. Acho que acertamos o alvo."
Isso exigiu um esforço tremendo dos profissionais de saúde, professores e voluntários.
Joaquín Delgado contou que era preciso caminhar um dia inteiro para chegar a algumas comunidades. "Às vezes, perdíamos os sapatos na lama e seguíamos descalços", lembrou o enfermeiro.
Para Zapata, o diagnóstico de Tenorio Cortez foi fundamental para a erradicação da poliomielite no Peru.
"Acho que, no final, Luis Fermín, infelizmente com um custo muito alto para sua pessoa, nos permitiu refletir mais sobre o comportamento do vírus e perceber o que estava acontecendo".
'A poliomielite ainda é um desafio'
Em 1994, a América foi a primeira região do mundo a ser certificada como livre da pólio. Mas a doença continua paralisando crianças.
O poliovírus selvagem (aquele que circula no meio ambiente naturalmente) possui três cepas. O tipo 2 foi declarado erradicado globalmente em 2015 e o tipo 3, em outubro de 2019. O tipo 1, entretanto, continua circulando em dois países: Afeganistão e Paquistão.
"A situação da poliomielite no mundo ainda é um desafio", disse à BBC News Mundo Angela Gentile, infectologista pediátrica, diretora do Departamento de Epidemiologia do Hospital Infantil Ricardo Gutiérrez, em Buenos Aires, e integrante da Comissão Regional de Certificação de Erradicação da poliomielite da Opas.
"Ainda estamos enfrentando o desafio de erradicar o poliovírus selvagem 1. Mas, além disso, o mais desafiador é o surgimento de poliovírus derivados da vacina."
Existem dois tipos de vacina contra a poliomielite: oral, que usa um vírus atenuado, e injetável, que usa um vírus inativado. Em casos muito raros e sob certas condições, o vírus da vacina oral pode sofrer mutação, tornar-se virulento e causar paralisia.
"Dizemos que a vacina oral, que é muito fácil de administrar, nos permitiu chegar aqui", disse Gentile.
"Mas, aos poucos, foi se vendo que, para atingir a meta de erradicação, era preciso substituir a vacina oral pela vacina inativada."
A Iniciativa Global de Erradicação da Pólio atualiza o número de casos em todo o mundo todas as semanas em seu site.
A foto, quase 30 anos depois
O desafio contínuo da poliomielite faz com que a foto de Pichanaki de 1991 transcendesse sua história e ganhasse um significado ainda mais profundo.
Para Gentile, a imagem desperta antes de mais nada uma reflexão. "É uma imagem que, com o tempo, se tornou símbolo de tudo o que evitamos", disse a médica à BBC News Mundo.
"É uma alegria pensar que, com uma vacina tão barata, tão fácil de administrar, conseguimos evitar que milhões de meninos de casos como o dele. Esta foto nos lembra de tudo aquilo que podemos prevenir."
Como se sente Tenorio Cortez hoje ao se ver nessa imagem?
"Deve ser erradicado para que nunca mais haja pólio no mundo. Todas as crianças devem ser vacinadas", disse ele à BBC News Mundo. "É uma doença horrível que não desejo a ninguém."
Zapata diz que "muitas coisas" vêm à mente quando vê a foto. "Vejo o grande espírito de sacrifício de nossos talentos humanos que, naquela época, realmente provaram seu valor", disse ele.
"Chegaram a lugares incríveis, atravessaram rios, percorreram trilhas ou morros que quando chovia ficavam muito, muito escorregadios. "Além disso, houve uma comunhão de ideias. Todos participamos, o governo, a Opas, a Unicef, o Rotary."
O combate à poliomielite permitiu a criação de estratégias de vacinação que ajudaram a combater outras doenças, como tétano, coqueluche, febre amarela e sarampo.
Para o pediatra, a foto de 1991 simboliza uma lição que deve ser transmitida aos jovens nas escolas de saúde pública de toda a América Latina.
"Apesar das circunstâncias tão difíceis, é possível fazer coisas quando há convicção. É a maior satisfação da minha vida profissional", frisou Zapata à BBC News Mundo.
"Digo à minha família: hoje em dia, não vejo tantas muletas por aí, vejo menos crianças com esse tipo de problema. Valeu a pena."