Política : A MISSÃO
Enviado por alexandre em 04/08/2018 12:57:16

Estou cumprindo missão de Deus, diz Bolsonaro

Josias de Souza

Deus, como se sabe, existe. Mas é evidente que Ele abandonou o Brasil e foi cuidar de outras coisas. Contudo, num instante em que a sucessão de 2018 potencializa a impressão de que o país está à deriva, o Todo-Poderoso enviou um sinal: “Eu estou cumprindo uma missão de Deus”, disse o presidenciável Jair Bolsonaro na noite desta sexta-feira, durante sabatina exibida pela Globonews.

Missão de Deus?, estranhou um incrédulo Roberto D’Ávila. E Bolsonaro: “Eu sou cristão. Olha só a situação que eu cheguei. Sou do baixíssomo clero, não sou ninguém na política, não sou nada. E tenho o apoio popular que está aí. Não é inimaginável o que está acontecendo? Como eu consegui isso?”

Primeiro colocado nas pesquisas que desconsideram o nome de Lula, Bolsonaro extraiu seu “lema” do Evangelho. Citou o livro de João (8:32): “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.” Enquanto espera pela revelação da verdade e pelo milagre da multiplicação dos votos, Bolsonaro especula sobre os rumos do seu futuro governo.

Uma coisa parece certa: o candidato prefere ser oportunista e flutuar do que afundar com a racionalidade amarrada no pescoço. “Alguns falam: ‘Você não vai governar, o Brasil vai parar’. Na situação em que se encontra o Brasil é melhor parado do que afundando”, declarou Bolsonaro. “Eu sou diferente. Posso até não ser o melhor, tudo bem, paciência. Mas sou diferente.”

Bolsonaro inspira sentimentos extremos. De um lado, o anti-bolsonarismo primário. Do outro, o pró-bolsonarismo ingênuo, que aceita todas as presunções de Bolsonaro a seu próprio respeito. Isso inclui aceitar a versão de que o candidato cumpre mesmo uma missão que, por ser divina, é indiscutível. Dias atrás, Bolsonaro prometia elevar de 11 para 21 o quadro de ministros do Supremo. Desistiu. Agora, acena com a hipótese de privatizar a Petrobras caso o preço dos combustíveis não caia. Logo recuará, pois avisa ser pessoalmente contrário à ideia.

Difícil saber o que incomodou mais Bolsonaro durante a transmissão do programa, se o interrogatório dos repórteres ou os punhos de sua camisa. Antes de sair para o estúdio da Globonews, Bolsonaro deve ter feito uma consulta urgente ao economista Paulo Guedes. “Desabotoe os punhos da camisa”, aconselhou o guru do candidato, pelo telefone.

Tomando o conselho como ordem, Bolsonaro retirou os botões das casas correspondentes. E passou toda a sabatina se debatendo contra os repórteres e os punhos frouxos. O pedaço da plateia que prestou atenção ao pano que insistia em escapar pelas extremidades das mangas do paletó de Bolsonaro decerto não notou a inconsistência das respostas do candidato sobre economia.

Não é que Bolsonaro queira ocultar as coisas. A questão é que ele já nem se constrange em revelar tudo o que ignora. ''Se eu tenho do meu lado uma pessoa como Paulo Guedes, por que eu vou falar de economia?'', indagou. ''Perto do Paulo Guedes, eu não entendo nada. Eu dirijo carro, por exemplo, mas, perto do Nelson Piquet, eu sou um navalha.''

Confirmando-se os desígnios de Deus, você terá que se acostumar com a ideia de que sua vida será dirigida pelo Paulo Guedes. Chamado de “Posto Ipiranga” por Bolsonaro, ele dispõe de procuração divina para pilotar as decisões econômicas que afetarão o seu cotidiano. O que não deixará de ser tranquilizador quando estiver no Planalto um presidente com graves dúvidas existenciais: abotoar ou não abotoar os punhos da camisa?

Dicas para Bolsonaro


Antes de falar bobagem sobre a África, que tal ler Alberto da Costa e Silva?

Álvaro Costa e Silva – Folha de S.Paulo

Candidato à Presidência, Jair Bolsonaro fez um comentário aloprado —mais um!— em entrevista ao programa Roda Viva: “Se for ver a história realmente, os portugueses nem pisavam na África. Foram os próprios negros que entregavam os escravos. (...) Faziam tráfico, mas não caçavam os negros. Eram entregues pelos próprios negros”.

Em artigo publicado na Folha, a historiadora Lilia Schwarcz refutou a asneira, mostrando que os portugueses “pisaram”, sim, em território africano —primeiro na Guiné, depois em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe—, contato que marcou uma longa aventura e antecede em meio século a descoberta do Brasil. Por dois séculos estiveram com os pés fincados na região de Luanda, hoje capital de Angola —muito bem familiarizados com a população que escravizavam.

Não sei se o candidato aprendeu a lição que Lilia lhe deu de graça, ou mesmo se está interessado em aprender alguma coisa na vida. No entanto, gostaria de lhe indicar a leitura de dois livros do embaixador Alberto da Costa e Silva, o brasileiro que mais entende de África e de sua gente.

São obras volumosas, juntas somam mais de 2.000 páginas —mas não desista só de olhar, Bolsonaro, coragem. O primeiro é “A Enxada e a Lança”, cujo subtítulo é esclarecedor: “A África Antes dos Portugueses”. O segundo, “A Manilha e o Libambo”, trata da escravidão no continente, abrangendo o período de 1500 a 1700. Ambos são estudos que iluminam o que os brasileiros somos hoje e o que podemos nos tornar no futuro.

Outra dica: o angolano Pepetela abordou a trajetória de um colonizador português no romance histórico “A Sul. O Sombreiro”. Seguem as primeiras linhas: “Manuel Cerveira Pereira, o conquistador de Benguela, é um filho de puta. O maior filho de puta que pisou esta miserável terra. Pisou no sentido figurado e no próprio, pisou, esmagou, dilacerou, conspurcou, rasgou, retalhou”

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